domingo, 27 de janeiro de 2008

Um adeus aos mortos

- Porque é que morreste? Desististe do mundo e de tudo o mais. Abandonaste a minha alma para ser pescada.
E foi desta forma que Sabine se tornou apenas mais uma sereia, uma tal como tantas outras. Como se as reconhecem? Quanto maior for o seu salto para o abismo, mais esplendorosas serão. O seu grito, o seu chamamento de amor. Ah, tudo mentira. Se apenas soubessem de como são criadas estas sereias, mas tudo o que fazemos é admira-las. Os seus lindos reflexos e beleza. Tornaram-se peixes gritantes, amantes esplendorosos. Contudo, são apenas suicidas que desistiram de uma vida de cinismo e de falta de paixão. São almas perdidas para sempre que se atiram do alto da ponte, e mais tarde abraçam o mar ou rio como seus na eternidade. E no alto da vertigem o seu grito chama-nos, seduz-nos, encanta-nos, e sentimo-nos tentados, senão impelidos a seguir as admiráveis sereias tornarmo-nos uma delas.
No terrível salto, a nossa roupa evapora e a nossa pele, gradualmente, torna-se em escamas multicolores de vários tamanhos e feitios. Deixamos de ser humanos para nos afogarmos no profundo inferno do mar. E aí ocorre o final da transformação, perdemos a humanidade, a alma, o sopro que nos faz viver. Morremos finalmente, morremos para tudo e todos, e aí vivemos para morte. É horrível decerto, mas mais vale saber a verdade que ignorá-la. As sereias que amamos são fruto de um tabu. Palavras que não devem ser ditas ou sequer pensadas. Arrisco-me a pensar, para quê? Para apaziguar a minha mente que deve ser acalmada, tranquilizar uma alma que não quer saltar. Não quero ser um mito alado do mar para já, quero viver e recolher o que de pouco ou muito a vida tenha para dar. Mas estes pensamentos existem, em mim, em ti, em todos e, ainda assim, todos parecem negar. Os sonhos do salto, a cinza da nossa pele que lentamente desvanece no ar: são as feras do nosso coração. E com um misto de alegria e tristeza no olhar, eu observo a coloração das escamas do teu corpo. És esguia, de traços definidos, bela Sabine das profundezas. Com a tua partida todos perdemos, mas o mar ganhou a sua vantagem. O teu grito é como uma peça de Bach, calma e profunda, um encantamento extraordinário sem comparação.
E, no parque à beira-rio despeço-me de ti. Poderia ser tudo lamúrias mas finalmente me liberto de ti, mortal Sabine de outros tempos. O parque é como uma visão da pessoa que outrora já foste. Grandes árvores de um verde penetrante jamais visto, longas mas suaves aragens de um toque agradável, o rubor de cânticos selvagens da vida. E num antigamente, não tão distante, tu foras em vida mais bela que qualquer sereia. Esbelta Sabine de olhar fulminante. E parado a olhar para uma água que apenas me reflecte a mim à beira rio, pronuncio delicadezas intemporais:
- Até nunca mais, possibilidade impossível. Grita quanto quiseres, mas o meu amor por ti era pela tua alma viva.
Num grito ensurdecedor o mundo ruiu, não o meu mas de mitos alados. Na minha consciência tudo era tranquilo, finalmente a sinceridade cruzou no meu caminho.
- Adeus, ponto final

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A Casa de Espelhos


É estranho como as coisas acontecem, afinal, eu vi-te da mesma forma que me vi. Tinhas os mesmos olhos, cara e corpo mas tudo era diferente. Do teu lado da vida havia uma essência desigual a mim, parecia tudo mais aquoso e gelado. É verdade que não deixa de ser engraçado a forma como te reencontrei, por entre reflexos mal formados. No entanto, tenho que ser sincera, sinto sempre o mesmo torpor quando te revejo. Qual bolha que me envolve sinto o mundo a acelerar, cada vez mais rápido tal como um carrossel que gira e gira sem parar. E para piorar, as pessoas à minha volta entram em lentos comas, destoando da velocidade do mundo. É inútil tentar raciocinar algo de coerente e, quando tento falar os meus lábios cerram-se cada vez mais. Às vezes espanta-me como aguentas o contínuo borbulhar de ruído, sons que cada vez mais alto se sobrepõe até convergirem no mais puro silêncio. Sim, é angustiante perder o controlo em mim. Não pensas o mesmo? Perco a ordem e equilíbrio e nada parece fazer sentido e, quando a coragem finalmente chega para te tocar, sinto apenas o toque do meu corpo.
Aconteceu tudo de repente, o acordar do meu sonho latente. Sou assim de voos constantes entre realidade e imaginação, como um botão on e off que continuadamente carregam por pura diversão. E se achasse que tivesse nome digno de mencionar diria, mas considero-me apenas ausência. Queria que percebesses porque fugi de ti quando estava prestes a alcançar-te, distraíram-me com vontades sem reais fundamentos. Mas eu sei que voltarei a ver-te, sei a tua verdade e não é difícil de chamar por ti. E um dia tudo será de louvar, irei passar a fronteira e conhecer outros calores.
E foi passado três tempos que de novo te vi, numa noite escura e brilhante como tantas outras. Tinhas feito a tua magia decerto, sentia mais uma vez a bolha que me enclausurava para perto do outro lado. Quis tocar-te para apenas sentir o meu toque em mim, ilusão na qual sempre me encontro. Mas por fim gritei, acima de todo o ruído:
- Porque é que seques as minhas viagens, se tens o teu mundo para viver?
Foi ousadia minha talvez, correr o risco de nunca mais o sentir, o meu reflexo no outro mundo. E igual a todos os outros momentos, a resposta à minha voz foi ela própria. Eu serei para sempre a realidade e imaginação, apesar de inúmeras vezes as ter tentado separar. De novo chego a conclusão que, eu e mais eu serei pois o que quero desagregar não se divide. Eu viajo e o meu reflexo segue, qual fiel companheiro que para a eternidade permanece. E graças a essa união eu vivo e o outro lado também, realidade e imaginação que mutuamente se alimentam.
E de novo ligam-me à vida, saída de um coma, de um sufoco e mais uma vez respiro no que penso ser a realidade.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Um Conto aos Corvos

E ela dissera:
- Ganha juízo.
Nem mais nem menos. E assim fiquei, estático, imóvel, retribuindo-lhe o olhar. Olhava para os seus profundos olhos cor de chocolate, que sugavam cada parte do meu ser para perto dela. Depois atingira-me, deixara de ser eu enquanto a mirava! Deveria ter gritado, vomitado as minhas entranhas mais o seu líquido pestilento e obscuro, debater-me perante ela qual titã enfurecido. Acima de tudo deveria ter-me defendido, mas nada fiz e ali fiquei: perplexo, apático. Em conjunto, éramos duas estátuas em silêncio que para a eternidade se fitavam mutuamente. Contudo a verdade era outra, estávamos vivos e a cada um pertenciam um coração sangrento que batia num ritmo diferente.
Quando tinha percebido o que se passava, já as vozes se elevavam a extremos tais que todos os entendimentos se rompiam. E por mais estranho que soe, ela venceu. No seu olhar não se percebia qualquer perturbação, apenas alívio de uma alma que tudo proferiu. No entanto, sentia-me como morto, sem vida ou sopro em mim, era de uma ausência de vontades. É verdade, admito, não estava preparado para ouvir o mundo e acreditar em todos os meus erros. Hoje estou derrotado, abatido e chocado. Nunca antes, eu não tinha sido eu, concha sem motor ou causa, e agora aqui estou de corpo vazio. E em tudo isto, ela olha para mim de feição alterada, parece incrédula, surpreendida; percebe que não estou em mim, que me afectou. Mas não vou permiti-lo por mais tempo, quem sou sempre o serei e de novo quero encher-me de vida. Só preciso de tempo para abrandar e de novo avançar nesta vida de meros tolos paradoxais. Não prometo ou jurarei, mas sei que voltarei a mim próprio: insano, pérfido e absurdo, talvez um pouco mais consciente e teimoso. De novo serei Pierre o Louco, com histórias sem alguma utilidade ou convenção e tudo em mim será mais uma vez questionável. E como um poder que se esgota mas mais tarde retorna, sinto essa mudança a principiar. Ela olha para mim suplicante, nervosa, com receio, pressente o que se avizinha e o que vai na minha mente. E conforto-a perversamente pronunciando meros sorrisos, o que de melhor posso proferir invés de palavras. Delicioso sorriso de perdição que até a mim me causa arrepios. Está prestes a começar, o seu mais temido pesadelo de desgraça. E por fim, os meus sons flutuaram pelo ar:
- Não tenhas medo minha querida. Tiveste o mundo num minuto, dá-me o resto agora! Descansa, afinal não sou assim tão pérfido quanto julgas.